Seguidamente meu pensamento volta no tempo, trazendo lembranças que pareciam esquecidas. As vezes, é um frase, um momento, uma paisagem que faz com que aquelas memórias apareçam. Outras vezes desconfio que tais lembranças aparecem para dizer que a vida não se resume ao que estamos vivendo, uma guerra sem limites, a falta de compreensão entre as pessoas, a digladiação por pensar diferente, por ser diferente. Esta energia que nos consome se nos deixarmos levar. É a forma que encontramos, vai ver, eu penso, de nos protegermos dessa loucura toda. Porque as memórias de outrora valorizam o que e quem somos. Lendo um parágrafo de O Tempo e o Vento, do saudoso Érico Veríssimo, em meio a uma ventania no domingo, veio a lembrança do meu velho avô paterno. Uma figura querida, carinhosa com os netos, determinado nas suas convicções. No domingo estive na Palma, onde ele morou a vida inteira. Lá, está o sino da igreja que ele tocou a vida inteira, todo domingo e sempre que alguém daquela comunidade resolvia passar para o outro lado do caminho. No alto da coxilha, imponente, como se o tempo não estivesse passando, está a figueira que toma conta da paisagem.
Lembro bem que por trás dela tem uma tapera, que nós, crianças, íamos procurar tesouros. Nunca achamos, mas guardo a certeza de que naquele lugar haviam muitos tesouros enterrados. Ou o próprio lugar seria um tesouro, penso hoje. O vô Almindo fazia banquinhos para os netos sentarem ao redor de uma panela de ferro cheia de brasas acesas no inverno para ele contar causos nas noites frias do inverno. Claro que os causos envolviam mistérios e assombrações que aconteciam por aquelas bandas. Nós adorávamos. O problema era ir dormir. A casa dos meus avós era construída em duas partes, entre a cozinha e a parte dos quartos tinha um corredor que encanava o vento. Esse ar com mais velocidade, digamos, ganhava outra conotação depois das histórias do vô e essa passagem que não dava mais do que quatro ou cinco passos virava um desafio para a criançada. Tenho certeza de que o vento soprava mais forte quando a gente passava ali.
O vô tinha o hábito de dormir cedo e acordar mais cedo ainda. O sol ainda demoraria a aparecer e ele já estava nas lidas do dia. Ao acordar, a gente ouvia do quarto a voz inconfundível do jornalista Vicente Bisogno no Controle Geral da rádio Imembuí. Chapéu, bombacha e chinelo de couro era a roupa que vi meu avô a vida inteira. Nunca o vi de camiseta, de calça social ou de chinelo de dedos (esse ele usava só na hora do banho). Calça social só em ocasiões como algum casamento na vizinhança, mas era raro. Apegado à sua vida modesta, ele nunca quis saber da luz elétrica, o que para nós era diversão. Na casa dos meus avós se usava o lampião a querosene. Um grande para iluminar toda a cozinha e os pequenos para nos acompanhar nas outras peças da casa em noites escuras.
A luz já tinha chegado na comunidade, mas ele preferiu continuar com seus inseparáveis lampiões. Ah, o vento. A casa do vô ficava no alto, era início da subida do cerro, o vento sempre estava assobiando por lá. Ainda mais nas noites de contação de causos, no corredor entre as casas. E foi por causa da Ana Terra que veio esta lembrança: "Em certas noites, Ana ficava acordada debaixo das cobertas, escutando o vento, eterno viajante que passava pela estância gemendo ou assobiando, mas nunca apeava do seu cavalo; o mais que podia fazer era gritar um "Ó de casa!" e continuar seu caminho campo em fora. Como o tempo custa a passar quando a gente espera! Principalmente quando venta, parece que o vento maneia o tempo... Sempre que me acontece alguma coisa importante está ventando - costumava dizer Ana Terra." É, parece que o vento maneia o tempo e traz lembranças que estavam guardadas no fundo da caixinha da memória, pareciam esquecidas, mas de vez em quando aparecem para dizer um oh! de casa.